quinta-feira, 9 de junho de 2011

Avenida Paulo-Sexto, Parte I

Eu sempre gostei de andar. Sempre achei que ajudava a organizar as ideias, a pensar no que era melhor pra fazer, no que podia ser feito. É uma das tanas partes de mim que eu me esqueci, e que só agora que eu tenho voltado a lembrar. É simplesmente fantástico: a sensação do movimento, do vento batendo no rosto, de estar se movendo, de ter um lugar pra onde ir. É fantástico, mas mesmo assim, me pegou de surpresa.
Eu nunca fui muito bom pra chorar em público. Por mais que o sentimento aflorasse, por mais feliz ou triste que eu pudesse ficar, simplesmente não saía. Só pra sair depois comigo e meus botões, ou com um ou dois à parte no meu quarto ou no da minha irmã. Simplesmente, é assim que funciona comigo.

"Você já vai? A gente já tá chamando o pessoal pra voltar pra aula"
"Não... eu vou voltar... só vou ali rapidinho..."

No corredor, me deparo com elas duas mais uma vez. As duas abraçadas, e os cabelos vermelhos se confundindo no meio do abraço. Mais uma vez eu tentei me aproximar, tentei me encaixar no abraço, tentei dizer que eu estava tudo bem, que eu estava ali que tudo ia dar certo. Tentei dizer o que não pode ser dito com palavras, mas que a gente teima em tentar mesmo assim. Me separei rápido. Sábia que não era ali que eu devia estar. E mesmo sem ter a menor ideia de onde, nem quando, nem como eu devesse estar, comecei a descer as escadas, trêmulo. No caminho, mas pessoas:

"A gente já tá voltando pra aula, você não vai mais não?"
"Não... eu vou, só... só tenho que ir ali antes"

E me desvincilhei mais uma vez. eu não sabia o porque de continuar repetindo que tinha algum lugar pra ir, quando nunca foi mais evidente que eu não tinha nenhum. Comecei a descer as escadas correndo, até chegar no primeiro andar. Àquela altura eu já sabia que não ia mais voltar. Comecei a me deixar ser guiado pelos meus instintos, como aprendi que a gente tem que aprender a se deixar fazer. Deixei a minha mochila na escada da frente do colégio e, lentamente saí para a noite que já havia caído, passando no caminho pela barraca do outro lado da rua. No caminho passei rápido por mais dos meus colegas do teatro, sem dar tempo que nenhum deles me visse nem me perguntasse nada: eu não queria parar.
Fui em direção ao caminho que já sou habituado a fazer no intervalo, e fui andando cada vez mais rápido conforme subia a ladeira. No meio da calçada havia um tijolo, simples, como os que se vê encostados em qualquer canto num muro de Salvador. Dei uma bicuda com força nele, e o observei dar uma cambalhota e ir parar dois metros à minha frente. Sem parar de andar chutei-o de novo, dessa vez com toda a minha força, fazendo com que o bloco se espatifasse em centenas de pedaços. A dor no meu pé deu o empurrão para todos os meus sentimentos: a tristeza, a melancolia, a infelicidade e, sobretudo, o pesar.
Do nada percebi que estava correndo. A rua era escura e deserta, e eu sei, é o tipo de cena típica de assalto, mas eu comecei a perceber que eu não me importava. Não ligava que levassem o meu celular, ipod, dinheiro e tudo mais o que tivesse no bolso. Na verdade, até queria que me levassem isso tudo, que me livrassem de toda essa parafernália, que me tirassem o peso dos bolsos e, aproveitando, me tirassem os das costas também. A insanidade que se apoderou de mim se recusava a ir embora, e eu não fazia a menor questão do contrário. Parei de correr. Comecei a me dirigir à avenida principal, onde os carros são mais movimentados e havia mais gente. Parei num monte e olhei os carros lá do alto:

- PORRA!! MERDA!! CARALHO!!

Porque é que são sempre os bons que morrem? Porque é que gente decente evapora que nem água, enquanto gente cada vez pior se multiplica cada vez mais rápido? Porque é que a gente, que é decente, não tem a decência de se preguntar como é que chegamos a esse ponto? Como é que essa cidade toda ainda se sustenta? Como é que a gente ainda se sustenta? A infelicidade que atinge tanta mais gente do que as pessoas gostam de admitir, a incerteza de quem vive feliz se ainda vai ser feliz amanhã. A carência de quem não tem quem o ame, a solidão de quem não tem a quem amar. Como é que a gente aguenta? - Subitamente emputecido, dei um soco no Ou-Door à beira da pista. Inconformado com a dor, joguei novamente a minha mão com toda a força vez contra a placa de metal. Dessa vez a dor foi lancinante. Senti minha mão latejar, e tive a certeza de no mínimo um hematoma, ou até um ou dois ossos quebrados, á julgar pela má articulação dos dedos.

-PORRA!! DROGA!! - Gritei mais uma vez do monte de grama.

Ninguém deu atenção. Todos os carros seguiram, indiferentes seus caminhos, e as poucas pessoas que haviam na rua, nem parecem ter me ouvido. E sem as respostas para a minha crise existencial, voltei a andar até a avenida principal. Atravessei entre as brechas dos carros e me pus a andar, melancólico pela calçada ao lado do esgoto, e observei-o um pouco. Me perguntei, afinal, quantas pessoas daquela cidade conheceriam aquele ponto tão pouco convidativo, e quantos nunca haviam decido até aquela ínfima parte da cidade. Eu mesmo, nunca andei por tantas ruas de Salvador, quanto mais pela borda de um esgoto lamacento. Lentamente me abaixei, certifiquei-me de que meus cadarços estavam devidamente amarrados e comecei a descer. Não me pergunte o porquê. Já disse: estava seguindo os meus instintos. Mais de uma vez estive a ponto de escorregar e me agarrei numa planta no último segundo, como aconteceria num filme que passasse na televisão; e mais de uma vez olhei pra trás pra ver se não havia ninguém para me estuprar ali mesmo, como também a gente sempre vê passar na televisão.
Quando cheguei lá embaixo, com as mãos sujas daquela terra infectada, sentei e observei. Até aonde os meus instintos haviam me levado? O que eu estava fazendo ali, afinal? Desconfiado de mim mesmo, me pus a observar a obra que se dispunha à minha frente. Os dejetos da burguesia, do prefeito, dos senadores e do governador flutuavam a alguns passos distancia, inocentes, em paz. Até serem derramados em algum mar contaminando gente, contaminando peixes, contaminando baterias. Observando aquele cenário pintado pela corrupção da nossa cidade e por nós, que somos incapazes de impedir que a mesma aconteça, sem saber o que pensar mais. O verdadeiro esgoto é a boca de todos eles. São seus olhos barrosos que emanam indiferença e insensibilidade. São as hipocrisias que nos jogam como isca e que nós, peixes engolimos.
Sem tempo para refletir mais, meus impulsos mais uma vez me acordaram: Hora de se mexer. Subi com esforço o monte de terra que dava para a calçada, evitando usar a mão direita que ainda latejava no meio do processo. Quando me ergui, ninguém olhou. Ninguém achou estranho um adolescente emergir do que seria um esgoto, nem que ele cambaleasse e estivesse sujo de terra. Me recompus. Sacudi a terra do casaco e mais uma vez me pus a andar. Cogitei voltar para a aula, mas, instantaneamente percebi que também não era isso que eu queria fazer. Continuei a vagar pela calçada durante alguns minutos, quando avistei um casal de mendigos sentados, um com a mão no ombro do outro, em cima de um pedaço de papelão. Mais uma vez os sentimentos em mim afloraram, mas dessa vez, veio junto a pena. A pena pelas pessoas que tem que pagar pela piscina de luxo na casa do prefeito, pelo caviar servido com vinho tinto, e que não tem um pão pra colocar na boca do estômago. A revolta, a não-conformação com aquilo tudo. Eu já tinha passado por eles, quando rápido pus a mão no bolso e tirei o dinheiro que me havia sobrado do almoço: 12 reais. Era tudo o que eu podia fazer.

"Moça, licença, toma. Eu sei que vocês devem estar precisando."

A mulher me olhou, admirada, pegou o dinheiro e disse:

"Muito obrigada meu filho! Meu amor, olhe só!" Dizia ela enquanto passava o dinheiro para o marido
"Muito obrigado, meu jovem. Que Deus lhe abençoe" Disse o homem do lado da mulher
"De nada, de nada.. Eu... tenho que ir agora, até logo"
"Até logo, meu jovem, que Jesus lhe acompanhe"
"Obrigado... Que Jesus acompanhe o senhor também, adeus"

E sem dizer mais nenhuma palavra me virei pra ir embora. No meio do caminho, me virei e vi eles dois ainda admirando o dinheiro, um com o ombro na mão do outro. Senti orgulho de mim mesmo por causa daquilo. Para mim, a perca daquele dinheiro significava apenas um dia ou dois sem lanchar na escola, mas para aqueles dois, aquilo era como um banquete à luz de velas que eles ganharam e que - penso eu - eles iriam fazer durar até aonde fosse possível.
Foi só no meio do caminho que eu parei pra considerar a ideia de que eles não fossem comprar comida com aquele dinheiro. Que eles fossem drogados e estivessem indo comprar crack agora mesmo, ou mela, ou qualquer outra droga barata que haja por aí. Talvez seja inocente acreditar que eles estão colocando um pão no estômago agora mesmo, ou então comprando a manteiga que podem estar finalmente se dando ao luxo de ter, mas eu prefiro acreditar nisso. Prefiro acreditar que pão e manteiga ainda vale mais do que uma pedra de crack pra quem tem fome, e pra quem ainda não se perdeu.
(...)

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